DOS SONS RESTAM SÓ OS MURMÚRIOS: LÍDIA JORGE CANTA A COSTA DOS MURMÚRIOS
Resumo
Este trabalho tem como objetivo central tratar de aspectos da desmontagem do discurso oficial da História Portuguesa Colonial pela narradora do romance A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge. Através do questionamento de conceitos como verdade, erro, pós-verdade e linearidade discursiva, bem como da metodologia narrativa pluriperspectivada, a autora lança empreende uma narração híbrida, que compreende um conto, de título “Os Gafanhotos”, que abre o romance, e uma seção maior que é propriamente a narrativa questionadora, sob a perspectiva de Eva Lopo. Pesquisamos a ideia de imagem e o drama do indizível para chegar a novos modos de narrar o contexto da guerra, uma narrativa de caráter pós-colonialista e empreendida por mulheres depois de 25 de abril de 1974.
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Referências
“Sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro.”
Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”
“mentalidade dos oficiais em situação de guerra” (BETHENCOURT, 2003, p. 70).
[...] concluiremos que a narrativa de Eva progride em diálogo constante com o outro “autor” (ou autor-narrador”), que nunca é visto (ou ouvido) diretamente por nós; não estamos portanto perante um monólogo, ou perante um monodiálogo, mas sim perante um diálogo. (SARAIVA, 1992, p. 69)
[...] uma memória fluida é tudo o que fica de qualquer tempo, por mais intenso que tenha sido o sentimento, e só fica enquanto não se dispersa no ar. Embora, ao contrário do que se pensa, não ignore a História. Acho até interessante a pretensão da História, ela é um jogo mais útil e complexo do que as cartas de jogar. (JORGE, 2004, p. 42)
“impasse de linguagem (emocionado fico mudo, não consigo achar as palavras)” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 21).
– Deixe ficar aí, suspenso, sem qualquer sentido útil, não prolongue, não oiça as palavras. A pouco e pouco as palavras isolam-se dos objectos que designam, depois das palavras só se desprendem sons, e dos sons restam só os murmúrios, o derradeiro estádio antes do apagamento – disse Eva Lopo, rindo. (JORGE, 2004, p. 287)
“ocupa-se simultaneamente das duplicidades da representação e da memória – que lembra e esquece, que ressuscita e apaga” (SARAIVA, 1992, p. 73)
“por um lado, há algo que só pode ser nomeado na linguagem e não pode ser explicado, por outro há aquilo que não tem nome mas que o discurso definidor explica”. Diz ainda que “para quem medita sobre o inefável, é útil observar que a linguagem pode perfeitamente nomear aquilo de que não pode falar” (AGAMBEN, 2007, p. 104).
“colocar palavras mesmo nas coisas para as quais não temos espontaneamente palavras” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 52).
“deslocar a questão da História para o território da linguagem (...)” (FARIA, 2002, p. 39)
“o historiador poderia não dar a versão verdadeira dos fatos e sim veicular outras versões incompletas ou equivocadas”, tornando o discurso pretensamente empírico um “simulacro da verdade” (FARIA, 2002, pp. 38-39).
Definitivamente, a verdade não é o real, ainda que gémeos, e n’Os Gafanhotos só a verdade interessa. (...) A verdade deve estar unida e ser infragmentada, enquanto o real pode ser – tem de ser porque senão explodiria – disperso e irrelevante, escorregando, como sabe, literalmente para local nenhum. (JORGE, 2004, p. 91)
Treze anos de guerra colonial, derrocada abrupta desse Império, pareciam acontecimentos destinados não só́ a criar na nossa consciência um traumatismo profundo – análogo ao da perda da independência – mas a um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo. Contudo, nós assistimos a este espetáculo surpreendente: nem uma, nem outra coisa tiveram lugar. (LOURENÇO, 2000, p. 46).
“capaz de mapear ou desenhar a identidade crítica do sujeito ou do país, através da memória e de um olhar dotado de reminiscência e experiência”. (FARIA, 1999, pp. 106-107).
“Não, não introduza um discurso destes no seu relato. Seria tão grosseiro como sentar o menino de sexo espalhado sobre a mesa do banquete” (JORGE, 2004, p. 170).
“anular ‘Os Gafanhotos’” (JORGE, 2004, p. 287).
“Mas há vinte anos, nas colónias de África, ainda se admiravam as cicatrizes, e Forza Leal fazia bem em ter no guarda-fato meia dúzia de camisas transparentes” (JORGE, 2004, p. 68).
A cicatriz lilás, que abria no peito, dava a volta ao flanco, para terminar no meio das costas. (...) Não o disse explicitamente, mas era para que visse a cicatriz que íamos à praia defronte da casa de Jaime Forza Leal. Levou-me a ver a cicatriz como se mostra uma paisagem, um recanto, se vai até um miradoiro para tirar uma fotografia. ‘Vês ali?’ – disse ele. (JORGE, 2004, pp. 70-71)
“‘Estou em crer que estamos aqui mas é a defender os interesses de Paris, Londres, Bombaim. Nem sequer são os interesses de Lisboa!’ [...] Quando se via a vida roxa, não se entendia com clareza o Mundo e as relações entre os continentes. Lisboa estava a parecer ao tenente uma aldeia com sinos” (JORGE, 2004, p. 31).
“quando o interesse pela arte e pelas imagens não parava de crescer[.] Terá sido o questionamento da própria história através do questionamento dos seus objetos (...)” o responsável por exacerbar “um debate iniciado pelo estruturalismo, a começar pelas reflexões de Claude Lévi-Strauss sobre as relações entre história e estrutura?” (DIDI-HUBERMAN, 2014, pp. 6-7)
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